terça-feira, 11 de novembro de 2014

Onda abstrata

Grandes exposições em cartaz no país reveem a trajetória de dois mestres da arte que aboliram a figuração, com obras do russoWassily Kandinsky, em Brasília, e do alemão Hans Hartung, agora em São Paulo

SILAS MARTÍDE SÃO PAULO
Na superfície são rabiscos, linhas às vezes raivosas, às vezes mais soltas. Mas a pintura de Hans Hartung, uma pesquisa obsessiva dos gestos e da energia dos traços, não passa desse primeiro plano.
Esse artista alemão, morto aos 85, há 25 anos, fez de sua obra uma arquitetura chapada, telas em que traços premeditados entram em choque como num campo de forças.
Nas 162 obras do artista agora no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, fica claro como Hartung tentou eliminar qualquer ideia de profundidade para estabelecer em seus quadros um espaço quase cósmico, um vazio estruturado por suas linhas.
"Ele se interessa mais pelo gesto do que pela figura", diz Bernard Derderian, um dos curadores da mostra. "Não há referências a nada que não esteja na tela. É a cor por ela mesma, a mancha sozinha."
Talvez porque Hartung tivesse horror a qualquer narrativa mais concreta. Nascido na Alemanha, ele se exilou na França e lutou contra os nazistas na Legião Estrangeira, perdendo uma perna na Segunda Guerra Mundial.
Enquanto nos anos 1920 suas aquarelas, já abstratas, refutam qualquer ideia de contornos estruturais e parecem atmosferas coloridas e etéreas, as obras criadas depois do conflito parecem mais erráticas, com traços firmes.
Hartung planejava cada traço em desenhos e depois traduzia essa espontaneidade aparente para as pinturas, num avesso dos espasmos de um Jackson Pollock, o artista norte-americano, morto aos 44, em 1956, que foi o maior herói do expressionismo abstrato nos Estados Unidos.
"Ele era a resposta europeia à obra de Pollock", diz o italiano Achille Bonito Oliva, um dos maiores estudiosos da obra do alemão. "Enquanto Pollock expressa a vitalidade, Hartung criou uma gestualidade meditada. É um gesto que se torna força libertária."
ÚLTIMO RESPIRO
Nesse sentido, Hartung também é visto como o último respiro potente da arte europeia nos anos 1950, quando Nova York desbancava Paris como capital global da cultura.
"Ele foi o último representante da hegemonia da Europa no campo artístico", diz Derderian. "Sua obra se tornou um símbolo da modernidade na pintura abstrata."
No caso, uma modernidade descolada, em certo sentido, de sua biografia. Hartung não narrou histórias. Seu esforço foi criar uma abstração plena, livre de significados, que fosse só uma investigação da potência dos gestos.
É nesse ponto que Hartung, na opinião de Bonito Oliva, tomava distância da primeira geração de artistas abstratos, que pareciam fazer de seus traços uma ilustração das cicatrizes da guerra.
"Sua arte é fruto de um ritual iniciático", diz Bonito Oliva. "É uma coisa capaz de curar e ao mesmo tempo engendrar um novo movimento."

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