quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Jean Cocteau e Flávio de Carvalho - Será que a diversidade de talentos atrapalha?

MARCELO COELHO
Exposição na Faap e documentário mostram o talento disperso do mestre vanguardista
Às vezes o excesso de talentos atrapalha. Melhor ser bom numa coisa só do que em várias. Jean Cocteau (1889-1963) foi poeta, cineasta, desenhista, cenógrafo, teatrólogo e teórico do modernismo. Seus diários trazem amargas reflexões sobre o preço que isso lhe custou.
"Cada livro meu seria capaz de assegurar a reputação inteira de uma pessoa", queixa-se ele, sabendo que sua celebridade dependia "de uns filmes e desenhos à margem de minha obra principal, e de uma lenda a meu respeito, feita de inexatidão e de ouvir dizer".
O brasileiro Flávio de Carvalho (1899-1973) sem dúvida sofreu de uma maldição parecida com a de Cocteau. Pintor, desenhista, arquiteto e "performático" antes que o termo se tornasse moda, Flávio de Carvalho conhece uma fama intermitente, sem nunca alcançar o reconhecimento, digamos, de um Oswald de Andrade ou de uma Tarsila do Amaral.
Em parte, isso é uma questão de cronologia: ele entrou na história um pouquinho tarde, a tempo apenas de aderir ao movimento antropofágico, mas sem participar da Semana de 1922.
O arquiteto e agitador cultural iria empreender sozinho, em 1931 e em 1956, suas famosas "experiências". A primeira, que quase lhe valeu ser linchado, consistia em andar no sentido inverso ao de uma procissão de Corpus Christi.
A outra foi desfilar, de saia e meia arrastão, no centro de São Paulo. Flávio de Carvalho pretendia lançar um novo estilo de moda masculina, mais adequado ao clima tropical.
Na exposição dedicada a Flávio de Carvalho, em cartaz na Faap até dia 19 de janeiro, pode-se ver a blusa idealizada pelo artista. Em duas camadas, uma das quais feita com tela de plástico --daquelas que antigamente se punham nas janelas da cozinha para não entrar mosca--, aquela roupa devia ser desconfortável ao extremo.
Detalhe insignificante, por certo, quando o objetivo é ser moderno a todo custo. A exposição também mostra sua obra arquitetônica. São casas de uma estética limpa, sintética, comparáveis aos trabalhos de Warchavchik e Lúcio Costa.
Nada dessa arquitetura faz pressupor o traço bizarro, as deformações dos lábios e o colorido quase caótico das telas do mesmo autor. São retratos de personalidades conhecidas, como a pianista Yara Bernette, o maestro Eleazar de Carvalho e o compositor Camargo Guarnieri.
Há ali a intenção clara de confundir figura e fundo, rosto do retratado e mosaico de cores atrás dele, produzindo uma sensação de exagero quase diletante. Alguns passos adiante na exposição, e surgem desenhos a nanquim que poderiam perfeitamente ser de algum outro artista, mas nunca do mesmo que pintou os quadros ali do lado.
Com toda a paciência que parece ausente dos quadros a óleo, os desenhos vão compondo, contra um fundo neutro, figuras femininas que ganham volume através de infinitas ramificações de tinta preta, como se Flávio de Carvalho, em vez de mãos, tivesse patas de aranha.
Com tantas personalidades, quase "heterônimos", Flávio de Carvalho não facilitou as tarefas da posteridade. Sua fama é centrífuga, resistente e frágil como uma teia de aranha também.
Tentou, além disso, o cinema. Organizou uma equipe e se meteu no Xingu, com o projeto delirante de filmar "A Deusa Branca", história de uma beldade loura a ser cultuada pelos indígenas. A história dessa empreitada virou tema de um documentário dirigido por Alfeu França, que também descobriu nos arquivos de Flávio de Carvalho os rolos do que foi filmado na expedição.
O documentário teve pré-estreia no Itaú e deve voltar a ser exibido no ano que vem. Além de todo o seu interesse histórico e biográfico, é engraçadíssimo. Alfeu França decidiu manter a mesma impassibilidade que Flávio de Carvalho demonstrava em suas performances, e a narração não move um músculo enquanto mostra, passo a passo, a completa loucura de todo o projeto.
Interessado tanto nas louras (que recrutou com um anúncio de jornal em Porto Alegre) quanto no cinema, o artista entrou numa rivalidade com o indigenista que comandava a expedição. Depois de tentar liquidar o assunto a tiros, Flávio de Carvalho foi abandonado num igarapé e salvo por missionários.
Em meio à inviabilidade e ao improviso totais, o filme mantém a narrativa como numa espécie de exaltação protocolar, ao estilo dos documentários oficiais de 1950, da intrepidez do gênio.
Essa loucura a frio, essa provocação arquitetada a ponta seca, e realizada com ares de rabisco, talvez esteja na raiz da personalidade de Flávio de Carvalho. Haverá mais exposições sobre ele no ano que vem; falta muito, ainda, para se ter um retrato completo de seu talento disperso, feito de coragem e inconstância.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Mostra no Rio revê obra de Antonio Manuel: Artista célebre por invadir museu nu em 1970 quer se distanciar de seu passado político

DO ENVIADO AO RIO
É uma explosão calculada. Fragmentos de carvão estão pendurados do teto como meteoritos congelados no momento em que se espatifaram contra a atmosfera. Eles ficam imóveis, flutuando na ponta de fios de náilon, até que alguém esbarre neles.
"Não pode ir entrando direto aqui, senão mancha", diz Antonio Manuel, artista que criou a instalação há quase 20 anos e agora remonta a obra em mostra individual no Museu de Arte Moderna do Rio. "É uma coisa para o corpo, uma selva impenetrável."
De certa forma, desde que Manuel invadiu pelado o vernissage do Salão de Arte Moderna nesse mesmo museu em 1970, apresentando o próprio corpo como obra de arte, seu trabalho não deixou de pensar no embate --violento-- entre corpo e espaço.
Ele não quis mostrar fotografias da ação na mostra atual, mas suas instalações quase todas parecem ter como pano de fundo noções de fragilidade e equilíbrio, ou uma síntese estranha entre sensações de violência e paz.
Logo na entrada, Manuel ergueu muros de alvenaria em cores vibrantes. Construídas dentro do museu, as estruturas foram então marretadas e têm buracos que deixam ver as paredes seguintes.
"Elas viram uma passagem", descreve o artista. "É algo magnético. Você é puxado para dentro dos buracos."
Do lado de lá, além das barreiras, uma série de obras torna mais sutil essa reflexão, ao anular o magnetismo de imagens trágicas famosas.
Duas delas são peças novas que retomam as célebres intervenções sobre jornal que Manuel fez nos anos 1960, em repúdio ao regime militar.
Enquanto um vídeo mostra manchetes recentes sobre "miséria e violência", gotas d'água pingam sobre a tela, embaçando a imagem.
Manuel também encheu três tanques de água em que mergulhou páginas de jornal e fotografias de chacinas, criando um laboratório fotográfico às avessas, em que as imagens se apagam na claridade em vez de se fixarem.
Esse apagamento se radicaliza na última peça da mostra --um jardim de estruturas metálicas vazadas que lembram a diagramação de páginas de jornal, sem nada no lugar de textos e imagens.
Também tem a ver com um esforço do artista em se distanciar do próprio passado para mostrar outras vertentes de sua obra. Embora ainda ancoradas na política, suas peças buscam maior equilíbrio e pureza formal.
"Tudo é dirigido ao corpo", diz Manuel. "Não quero ser só o artista que ficou nu. Mas esse é o espaço onde isso ocorreu. E, pensando bem, estou nu aqui de novo."

    Criação de museus particulares é 'febre': Com governos em crise, instituições privadas ganham influência, além de alimentarem alta de preços nas obras

    Cresce o número de super-ricos que querem abrir seu próprio museu, diz consultor de colecionadores
    DO ENVIADO À CIDADE DO MÉXICO
    Museus de bilionários como o Jumex, na Cidade do México, ou o Crystal Bridges, que Alice Walton, a herdeira do Wal-Mart, construiu em Bentonville, nos Estados Unidos, ou mesmo o Instituto Inhotim, em Brumadinho, no interior de Minas Gerais, não vão parar de surgir tão cedo.
    "Vai virar uma febre. Vamos ver muitos museus privados abrindo", diz João Correia, sócio da empresa de consultoria Art Options, que atende colecionadores. "É uma tendência. Já temos dois clientes pensando nisso."
    São milionários que podem seguir os passos de Bernardo Paz, magnata do minério que transformou uma fazenda no maior museu a céu aberto no mundo, e João Carlos Figueiredo Ferraz, que abriu seu próprio --mais modesto-- instituto em Ribeirão Preto, no interior paulista.
    "Isso não nasceu com nenhum grande objetivo de fazer algo de interesse público", diz Ferraz. "Uma hora só me dei conta que as coisas que mais me seduziam estavam guardadas em caixas."
    Paz foi tão radical que em alguns casos pôs suas obras de arte no meio da floresta.
    "Não comecei uma coleção para meus amigos. Isso é só acúmulo", diz o mineiro. "Queremos criar as condições para que as obras mais complexas possam ser exibidas em caráter permanente."
    Nesse ponto, há generosidade nesses projetos faraônicos, que tornam visíveis ao público tesouros da arte até então pouco acessíveis.
    Mas também é fato que, quando mostradas, essas peças se valorizam ainda mais. A coleção de Eugenio López, que tem 2.700 obras, já triplicou de valor segundo o próprio dono, saltando de R$ 186 milhões para R$ 558 milhões.
    Cifras tendem a aumentar também com cada abertura de museu, num jogo de ostentação que turbina o mercado e transforma colecionadores em celebridades da vez.
    É o caso do francês François Pinault, dono de dois museus em Veneza --um deles é um palácio restaurado pelo arquiteto japonês Tadao Ando. Pinault completou o pacote da fama ao se casar com a atriz mexicana Salma Hayek, mais um poderoso ímã de famosos para as suas festas.

    terça-feira, 3 de dezembro de 2013

    Lei nazista impede devolução de obras de arte

    Por MELISSA EDDY e ALISON SMALE
    HALLE, Alemanha - Wolfgang Büche ficou surpreso quando, em novembro, uma aquarela apreendida pelos nazistas em um pequeno museu do qual ele é curador em Halle, cidade do leste da Alemanha, ressurgiu, como parte de um vasto acervo encontrado em um apartamento de Munique.
    Mas sua empolgação ao ver o trabalho, "Paisagem com Cavalos", um possível estudo para uma pintura do expressionista alemão Franz Marc em 1911, se viu temperada por um fato que ele define como "irrefutável": a lei de 1938 que autorizou os nazistas a apreender o quadro -e milhares de outras peças de arte moderna classificadas como "degeneradas" porque Hitler as via como tendo natureza judaica ou não germânica- continua em vigor até hoje.
    Autoridades alemãs acreditam que 380 obras confiscadas de museus públicos alemães sob essa lei da era nazista podem estar entre os 1.200 quadros, litografias e desenhos encontrados no apartamento de Cornelius Gurlitt, 80, filho de um marchand da era nazista.
    A existência da lei torna improvável que o museu de Büche ou dezenas de outros museus da Alemanha possam reivindicar a restituição de suas obras, dizem especialistas em questões judiciais e autoridades alemãs.
    E é provável que a lei continue em vigor.
    Os nazistas venderam milhares de obras no mercado aberto de arte para encher os cofres do país durante a guerra.
    Revogar ou reformar a lei de 1938 poderia colocar em questão uma rede intrincada de transações de arte envolvendo essas obras, que vêm sendo negociadas em todo o mundo desde então, algo que até mesmo muitos curadores de museus, como Büche, preferem não ter de encarar.
    Nenhum governo alemão tentou repelir essa lei da era nazista. "A situação legal é relativamente óbvia e clara", disse Büche, que supervisiona a coleção da Fundação Moritzburg, em Halle. "Só podemos recomprá-las de volta".
    De fato, as obras confiscadas dos museus públicos alemães estão em categoria separada das obras de proprietários privados judeus que foram confiscadas ou que seus donos foram forçados a vender. Os herdeiros desses proprietários ainda podem ter direito legal às peças em questão.
    Mas, para museus como o de Büche, o percurso legal é muito mais complicado. Além disso, se Gurlitt for capaz de provar que herdou as obras legalmente, elas bem podem continuar a ser sua propriedade, a não ser que surja um acordo com o governo.
    As autoridades alemãs estão sendo criticadas pela condução do caso -especialmente por terem mantido segredo durante dois anos sobre a descoberta das obras. Há dúvidas se elas têm ou não direito a confiscar a coleção completa. Gurlitt não foi acusado de crime algum.
    O promotor estadual de Augsburg, Baviera, onde o caso está sendo conduzido, declarou recentemente que instaria o grupo de trabalho apontado para esclarecer a proveniência da coleção a informar rapidamente a ele que peças pertencem irrefutavelmente a Gurlitt, para que possam ser restituídas ao proprietário. Gurlitt deixou claro que as quer de volta.
    Büche, o curador, também gostaria de ter de volta as peças de seu museu.
    Mas, em suas três décadas no museu Moritzburg, ele só pôde celebrar o retorno de 16 itens do pré-guerra, um décimo da coleção que no passado esteve entre as mais impressionantes do país.
    Algumas das peças que pertenceram ao museu hoje integram o acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York, depois de serem negociadas no mercado aberto.
    Há quem advirta sobre as implicações mais amplas de anular a lei de 1938. "Se essa lei for anulada, então todas as transações teriam de ser anuladas", diz Sabine Rudolph, advogada especialista em restituição de arte.
    "Se um museu que reconhece um trabalho na coleção de Gurlitt insistir em tê-lo de volta, seus dirigentes podem perceber de repente que têm em seu acervo diversas obras que um dia pertenceram a outros museus e que eles também teriam de restituir."
    Fonte: NYT, 03.12.13.

    quinta-feira, 28 de novembro de 2013

    Artista expõe autorretratos sobre emprego e idealização: 'Fired', de Cris Bierrenbach, discute sonhos e estereótipos das profissões

    Fotografias foram atingidas por tiros para subtrair a identidade da fotógrafa e realçar problemas coletivos
    DAIGO OLIVAEDITOR-ASSISTENTE DA "ILUSTRADA"
    Policial, enfermeira, jogadora de futebol, empregada doméstica, gari, recepcionista, executiva, aeromoça, chef de cozinha e prostituta.
    Essas são as dez profissionais "demitidas" que a artista paulistana Cris Bierrenbach, 48, expõe ao público a partir de hoje na mostra "Fired", em cartaz na galeria Lourdina Jean Rabieh, em São Paulo.
    Em fotografias impressas em tamanho real, Bierrenbach registrou a si mesma vestindo uniformes de ofícios facilmente reconhecíveis para discutir não só a padronização e os estereótipos do trabalho, mas também a crise do mercado.
    "Da mesma forma que há o sonho do casamento, do príncipe e do final feliz, a profissão é um sonho também", explica a artista.
    "O que você vai ser quando crescer?' é uma pergunta recorrente. Desde sempre a gente tem essa ideia do uniforme, do ideal", completa.
    O nome da mostra, em inglês, brinca com as traduções da palavra "fired".
    Ao mesmo tempo em que o vocábulo pode significar "demitido", também faz alusão aos disparos com armas de fogo realizados pela artista contra as imagens.
    Depois de se autodocumentar, Bierrenbach levou as fotografias para um estande de tiro, onde, utilizando armas de calibre 12 e 38, mirou a "cabeça" dos autorretratos.
    Em alguns casos, a artista utilizou explosivos.
    Segundo Bierrenbach, ao apagar o próprio rosto, ela deixa de representar a si mesma para se tornar uma condição coletiva.
    "A minha questão não é o autorretrato, não sou eu ali. Eu acabo me usando como um suporte", diz.
    NOIVAS
    O recurso é similar ao que a fotógrafa havia utilizado na série "Noivas - Aluguel e Venda", de 2004.
    Na obra, Bierrenbach percorreu a rua São Caetano, na região central de São Paulo, conhecida pelas lojas de roupas de casamento, e pegou emprestados diferentes vestidos para se transformar em um catálogo de noivas.
    No lugar da cabeça de Bierrenbach, um forte flash escondia o rosto da artista, fazendo o mesmo papel dos tiros e explosivos de "Fired".
    "Eu até brinco que essa [nova] série são as noivas dez anos depois, quando elas estão no mercado de trabalho e só estão se ferrando", conta, aos risos.

    Pesquisa traz à tona trabalhos perdidos de Flávio de Carvalho: Peças do artista, garimpadas em depósitos públicos de São Paulo, estarão em mostra na Oca

    Entre os achados estão figurinos para o balé 'O Cangaceiro', de 1954, e as plantas originais das casas na alameda Lorena
    SILAS MARTÍDE SÃO PAULO
    Mais do que artista plástico, Flávio de Carvalho, morto aos 73 há 40 anos, foi engenheiro, arquiteto, cenógrafo, diretor teatral, performer, designer e cineasta frustrado. Também acabou sendo vítima dessa pluralidade estonteante, já que parte de sua obra acabou espalhada --às vezes esquecida-- em arquivos e depósitos públicos.
    Ele tentou refundar os costumes, revendo a moda europeia no clima tropical, reinventando a ideia de moradia ao construir uma vila modernista na alameda Lorena, em São Paulo, e pregando uma arquitetura "nua e lisa". Agora, tem uma parte de sua história desenterrada.
    Um garimpo feito no Theatro Municipal, em salas da biblioteca Mário de Andrade e até em fundos de gaveta do Arquivo Histórico trouxe à tona uma série de trabalhos até agora dados como perdidos. A pesquisa foi feita nos últimos meses pela equipe do Museu da Cidade, responsável pelo acervo municipal.
    Entre as obras estão 12 figurinos do balé "O Cangaceiro", encenado por Carvalho nas comemorações dos 400 anos de São Paulo, em 1954, e as primeiras plantas das obras na alameda Lorena.
    O Museu da Cidade tentará integrar agora esses itens à coleção de arte de São Paulo, fazendo saltar de quatro para cerca de 40 o número de obras de Carvalho catalogadas no acervo público.
    Esse conjunto recém-descoberto também será o ponto forte da ocupação da Oca pela coleção da cidade a partir de janeiro do ano que vem, que estreia com uma grande mostra dedicada ao artista.
    "Estamos tomando o caso do Flávio de Carvalho como referência para pensar os objetos na coleção", diz Afonso Luz, diretor do Museu da Cidade. "Essas peças são documentos vivos da história."
    Mas, segundo Luz, o esquecimento delas se deu por causa do "olhar conservador sobre seu significado estético".
    "Temos o desafio de organizar milhares de bens culturais guardados em inúmeros depósitos e reservas técnicas espalhadas pela cidade", afirma. "Um dos motivos dessa dispersão é que o conceito corrente de artes visuais é de objetos de parede, obras que funcionam como decoração."
    ELO PERDIDO
    Os vestidos desenhados por Carvalho para "O Cangaceiro" representam uma espécie de elo perdido na trajetória do artista --um contraponto aos experimentos com moda nas performances que ele orquestrou.
    Enquanto Carvalho trouxe aspectos femininos ao guarda-roupa do homem em 1956, quando caminhou de saia e meia arrastão pelo centro da cidade na ação "Experiência nº 3", os vestidos de seu balé eram masculinizados, algo entre o sensual e a robustez de jagunços.
    Também têm grande ressonância agora as plantas originais da alameda Lorena. Com as casas hoje em grande parte descaracterizadas, algumas funcionando como lojas, os documentos podem servir de base para um restauro das construções que Carvalho criou nos anos 1930 como "máquinas de morar".
    Artista criou 17 casas nos Jardins, em SP
    O desenho reproduzido no alto desta página é uma das plantas originais feitas por Flávio de Carvalho para as 17 casas que construiu na alameda Lorena, em São Paulo. As plantas podem ajudar a restaurar as construções, datadas de 1936.

    Flávio de Carvalho é tema de mostra e documentário
    Nos 40 anos de sua morte, modernista tem pinturas exibidas na Faap
    Plural, artista também tentou fazer cinema; sua iniciativa de rodar um longa na Amazônia é analisada em filme
    DE SÃO PAULO
    Enquanto a Oca deve receber em janeiro um recorte expandido da produção de Flávio de Carvalho, que vai da arquitetura aos figurinos, uma mostra em cartaz agora no Museu de Arte Brasileira da Faap reúne a ala mais tradicional de sua obra, com retratos de gente como os maestros brasileiros Eleazar de Carvalho (1912-1996) e Camargo Guarnieri (1907-1993).
    Tudo, aliás, está interligado nessa história, já que Guarnieri, retratado por Carvalho, compôs "O Cangaceiro", balé que teve os figurinos criados pelo artista plástico.
    Maria Izabel Branco Ribeiro, diretora do museu da Faap, não dá a mesma ênfase aos projetos de Carvalho para além da pintura.
    "Dizer que a obra dele como figurinista é tão significativa quanto a obra de pintor e de arquiteto é uma afirmação desequilibrada", diz Branco Ribeiro. "Ele não tem uma preocupação com moda. Vejo as atitudes dele como de alguém que contraria regras, um iconoclasta."
    'DEUSA BRANCA'
    Iconoclasta ou só inquieto, Carvalho também tentou ser cineasta. Sua iniciativa de rodar um filme na Amazônia, para onde levou duas loiras esbeltas e dispostas a encarnar sua "Deusa Branca", virou alvo de um documentário lançado no Itaú Cultural e que deve entrar no circuito de festivais em 2014.
    No filme, o diretor Alceu Braga destrincha os bastidores de uma expedição do artista à selva em 1958.
    Sem roteiro, Carvalho pretendia gravar o embate de sua trupe com uma perigosa tribo de canibais, os xirianãs.
    Mas sua desgraça não veio pelas mãos dos índios, que serviram até banquete de macacos assados à equipe, e sim por ter se apaixonado por uma atriz, que conquistara também o capitão da expedição. Irritado, Carvalho até trocou tiros com o rival, embora nenhum tenha se ferido.
    A expedição fracassada sepultou a incursão cinematográfica do artista.

    terça-feira, 26 de novembro de 2013

    De Big Apple a Gran Manzana: Passado hispânico si de baixo do tapete

    Quando publicou um editorial em apoio a Bill de Blasio, o então candidato democrata à Prefeitura de Nova York, o jornal "The New York Times" argumentou que a cidade havia obtido "muitos sucessos" ao longo dos três mandatos consecutivos de Michael Bloomberg (2001-13), mas seu "renascimento" ainda precisava se completar.
    A metrópole que enfrentou a criminalidade, reorganizou as finanças, revitalizou bairros e redesenhou espaços públicos continua a conviver com padrões incômodos de desigualdade social.
    De Blasio, segundo o "Times", é o homem indicado para "dar voz aos nova-iorquinos esquecidos", os 46% que vivem próximos à linha de pobreza, os milhares que dormem em abrigos públicos, as famílias de baixa renda que não conseguem pagar aluguel e são empurradas para longe na luta pela sobrevivência.
    Grande parte da retumbante vitória que De Blasio afinal conquistou (ele é um típico progressista que quer taxar ricos para financiar o ensino público infantil) se deve à comunidade de origem hispânica.
    Os considerados brancos, que eram 42% da população nova-iorquina em 1990, são hoje 33% -enquanto os hispânicos já chegam a 29%.
    Ouve-se gente falando espanhol em cada esquina, em cada balcão, em cada carrocinha de cachorro-quente.
    PINTA
    A presença hispânica também é marcante no mundo das artes e da cultura. No fim de semana passado aconteceu a Pinta, a feira de arte latino-americana, que reúne galerias de países do continente, além de americanas, espanholas e portuguesas. O evento, que andou caído nas últimas edições, reapareceu com vigor, num endereço bacana (na r. Mercer, 82), no bairro do Soho.
    Em atmosfera intimista, a feira designou alguns curadores que selecionaram artistas e galerias para participar das diversas seções -como arte moderna, arte contemporânea, vídeos e emergentes.
    As galerias brasileiras Casa Triângulo e Baró foram convidadas para o "Emerge", setor coordenado pelo colombiano José Roca, curador-
    assistente de arte latino-americana da Tate, de Londres. A feira também teve uma programação de debates, dois deles dedicados a nomes brasileiros -os incontornáveis Hélio Oiticica e
    Oscar Niemeyer.

    Não pude comparecer à mesa que discutiu a obra do artista carioca, mas assisti ao painel sobre nosso arquiteto mais famoso, com a presença de Carlos Brillembourg, da Brillembourg Architects, e de Patricio del Real, curador-assistente do departamento de arquitetura e design do MoMA. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos.
    CASA ESPANHOLA
    Enquanto isso, o Museu do Brooklyn apresenta até janeiro uma exposição intitulada "Atrás das Portas: Arte na Casa Hispano-Americana (1492-1898)", a primeira grande mostra realizada nos Estados Unidos sobre a vida privada e os interiores das residências da elite espanhola que viveu na América, da descoberta até o fim do século 19.
    São cerca de 160 pinturas, esculturas, gravuras, tecidos e objetos de arte decorativa, que remetem o visitante a temas como a representação pictórica dos indígenas, os sinais distintivos da nobreza, o esquadrinhamento da casa e os rituais da vida doméstica.
    A convite de Gabriel Pérez-Barreiro, diretor da prestigiada Coleção Patricia Phelps de Cisneros (que cedeu peças para a exposição), tive a oportunidade de participar de uma visita guiada, com o curador Richard Aste. Uma aula.
    O império espanhol chegou a ocupar mais da metade do território hoje pertencente aos Estados Unidos -uma longa e tumultuada história, muitas vezes empurrada para debaixo do tapete, que continua a bater à porta do "sonho americano".
    SERRA NA GAGOSIAN
    Poucas coisas exibidas no circuito de arte em Nova York causam tanta impressão quanto a nova escultura que Richard Serra instalou na galeria Gagosian, na r. 21, no bairro de Chelsea (www.gagosian.com).
    São duas peças de aço justapostas, que formam uma estrutura sinuosa de grande escala, com espaços e caminhos internos pelos quais -como em outras obras do artista- as pessoas podem transitar. As dimensões impressionam: as duas "metades" têm 4 metros de altura, e o conjunto alcança 25 metros de extensão por 12,2 metros de largura.
    Nascido em San Francisco em 1938, Serra é um dos maiores escultores de nosso tempo, justamente celebrado em todos os quadrantes do planeta.
    E, sim, também ele é parte da herança hispânica na América: seu pai, Tony, era um imigrante de Mallorca que foi morar na Califórnia. Hasta la vista, baby.
    MARCOS AUGUSTO GONÇALVES, 57, é jornalista da Folha em Nova York. 24.11.2013
    www.canotusmusic.blogspot.com

    Caminhada em linha reta até o espanto: A política na poesia de Ferreira Gullar

    RESUMO Enquanto os poemas de juventude de Ferreira Gullar eram impulsionados por uma perspectiva utópica, sua obra atual preza o efêmero. Reconhece-se, nessa poética que se quer menos ideológica, a opinião por ele expressada em artigos e entrevistas recentes de que existe no mundo uma ordem natural contra a qual não há que ir.
    MIGUEL CONDE
    NUM ENSAIO publicado em 1982, o crítico João Luiz Lafetá definiu Ferreira Gullar (1930) como poeta da "caminhada em linha reta".
    Metáfora da resolução obstinada que, para Lafetá, levaria Gullar a recusar os desvios e paradas pelo caminho para ir sempre até o fim de suas inquietações, buscando respostas decisivas às questões que movem sua poesia. Metáfora no entanto surpreendente, talvez, para quem se acostumou nos últimos anos a ouvir o colunista da Folha se definir como um poeta do espanto.
    Se refletirmos um pouco sobre essas duas figuras, elas parecem mesmo quase o contrário uma da outra --a linha reta supõe urgência e deliberação, portanto também um rumo qualquer, enquanto o espanto, por definição, é inesperado e circunstancial.
    Esticando esse cotejo meio associativo, pode-se dizer ainda que o espanto é a experiência que, em razão de seu imprevisto, nos obriga a interromper o passo. Uma poética do espanto está portanto mais próxima do sobressalto, das epifanias de circunstância, enquanto a caminhada em linha reta indica certa cisma ou ideia fixa.
    Não é um acaso que as metáforas pareçam incompatíveis. Elas de fato se referem a dois poetas diferentes, ou, dizendo melhor, a dois momentos profundamente distintos da produção de um mesmo poeta.
    Um comentário feito pelo crítico Ariel Jiménez no recém-lançado "Ferreira Gullar conversa com Ariel Jiménez" [Cosac Naify e Fundación Cisneros; R$ 49,90; 256 págs.] ajuda a pensar o sentido histórico desse contraste. Na parte final do livro, um extenso diálogo com jeito de perfil autobiográfico, Jiménez observa "um traço de intimidade" que sobressai na poesia de Gullar a partir do "Poema Sujo" (1976), associando essa nova inflexão à constatação de que as "utopias, políticas ou não, estão mortas" e o que resta é apenas "o presente".
    O espanto seria então a figura possível da criação poética numa época que já não dispõe de utopias. O que significa dizer: não dispõe de certo horizonte ideal que sirva de rumo para a negação transformadora do presente, talvez por reconhecer em tal horizonte uma miragem ou abstração vazia, em contraste com a concretude do atual. Isso sem dúvida combina com o reconhecimento do capitalismo como destino natural da espécie humana que encontramos nos artigos e entrevistas recentes de Gullar.
    Daí que, enquanto nos primeiros livros de Gullar predomina o sentimento de que "a iluminação epifânica é breve e insuficiente" (como escreve Lafetá), em seus trabalhos mais recentes, pelo contrário, a epifania seja aceita em sua brevidade e insuficiência como o próprio sentido do fazer poético, agora compreendido numa chave mais modesta como expressão das experiências de espanto individual.
    EQUILÍBRIO A observação de Ariel Jiménez expõe também a limitação dos numerosos comentários críticos sobre a "maturidade" e o "equilíbrio" que caracterizariam o Gullar pós-"Poema Sujo" --podem ser mencionados, como exemplos, os comentários de Fausto Cunha, Miguel Sanches Neto e Alfredo Bosi, além do próprio Lafetá--, em contraste implícito com o que se deveria descrever como um ímpeto juvenil, que até então conduziria a sua obra à busca por soluções absolutas, terminando sempre em novos impasses.
    Em si mesma já questionável, na opção pelo sopeso cuidadoso que leva ao elogio do equilíbrio da dicção poética, o que essa caracterização parece deixar em aberto é sobretudo a relação entre esse arrefecimento e as novas inflexões dadas pelo poeta, nos últimos anos, à sua participação na vida cultural e política do país.
    Fenomenologia, concretismo, neoconcretismo, marxismo, são todos termos que, no caso de Gullar, se ligam não apenas a posições teóricas ou existenciais mas definem também --sem, é claro, esgotá-las-- sucessivas inflexões de sua criação poética. Mas, se todos esses fios se entrelaçam numa trama apertada nos relatos do próprio Gullar a respeito das primeiras décadas de sua trajetória, esse tecido literário-biográfico se torna visivelmente mais frouxo nos últimos anos.
    É como se não houvesse mais ligação clara entre o que Gullar escreve ao comentar a vida brasileira, ao discutir arte contemporânea e ao criar poemas e, portanto, os caminhos antes imbricados numa mesma trajetória se tornassem vias paralelas. De um lado o poeta do espanto, de outro o comentador social para quem "o empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas" e o capitalismo é "invencível" pois nasceu "dos instintos do ser humano".
    O mais importante esforço de articulação entre criação poética e postura político-existencial na obra de Gullar, à parte os textos dele próprio, é o ensaio de Lafetá citado acima. Intitulado "Traduzir-se", em referência ao poema de "Na Vertigem do Dia"(1980) que toma de epígrafe, o texto está recolhido em "A Dimensão da Noite"[Editora 34; R$ 68; 576 págs.], publicado em 2004, com organização de Antonio Arnoni Prado.
    Por meio de uma alternância notável entre detalhe e panorama, Lafetá percorre a obra de Gullar dos primeiros poemas até o início dos anos 1980, identificando como problema fundamental de sua obra ("o demônio de sua poesia", na bela formulação do crítico) a "consciência do tempo humano como incapacidade de plenitude", reconhecimento lúcido em tensão com o desejo desmedido "de coincidir com o absoluto".
    Esse problema teria no primeiro Gullar um sentido existencial, orbitando em torno da cisão eu- mundo, para depois tornar-se questão histórica, indivíduo-totalidade social. No "Poema Sujo", diz Lafetá, Gullar encontraria uma solução positiva para o impasse, reconhecendo, nas infinitas diferenças que separam e multiplicam as coisas, uma potência do diverso, e não mais a tragédia da comunhão, síntese ou verdade impossível.
    Algo semelhante ao que Alcides Villaça, em tese de doutorado defendida em 1984 e até hoje infelizmente inédita, chamaria de "multiplicação dos regimes de existência" no "Poema Sujo", já que nele o "diálogo" da enunciação poética não se dá mais com o tempo cósmico, concebido como medida absoluta e comum da existência, mas antes "com um outro humano" e a "pluralidade da vida".
    EXISTENCIAL Talvez fosse possível ampliar o quadro de leitura proposto por Lafetá para incluir nele os livros mais recentes do poeta, "Muitas Vozes" [José Olympio, R$ 25; 144 págs.], de 1999, e "Em Alguma Parte Alguma" [idem, R$ 32; 144 págs.], de 2010, argumentando que, em sua poesia tardia, Gullar se volta novamente sobre uma figuração mais existencial da sucessão temporal, mas agora sem o páthos da totalidade que impulsionava dramaticamente seus poemas da juventude.
    Em vez do fogo que consumia o cosmos em seus primeiros livros e reunia os seres numa atividade comum de criação dispendiosa da própria existência (em "A Luta Corporal", de 1954, ser é consumir-se), a figura decisiva da poesia recente de Gullar é o relâmpago, que dá a ver de maneira súbita o mundo que nossos hábitos rotineiros acabam tornando invisível.
    Nessa fase tardia, portanto, os limites do corpo e da consciência, embora às vezes perturbadores, não são de fato um problema a demandar respostas como as notáveis metamorfoses de "A Luta Corporal", mas apenas o "locus" dos pequenos insights, encontros e sublimidades inesperadas de que se faz a poesia.
    O eu-poético resigna-se à circunscrição de seu mundo particular, pois a totalidade torna-se mera especulação abstrata, relativamente desimportante diante da concretude afetiva e material da experiência individual do mundo.
    "O sentimento do limite é intenso e atravessa esta última escrita de Gullar", escreve Alfredo Bosi no prefácio a "Em Alguma Parte Alguma". De fato, o contraste entre o imediato e o ilimitado se torna um dos motivos constantes da poesia recente de Gullar, como em "Universo": "Vi pouco do universo: afora a asa/ de pó e luz da via Láctea, o que conheço/ são as manhãs que invadem a minha casa".
    Não há nessa limitação, porém, nada de trágico, pois os corpos celestes importam bem menos do que o "gatinho, meu amigo" de "A Estrela": "Pouco me importa/ quanto dura uma estrela./ Importa-me quanto duras tu/ querido amigo,/ e esses teus olhos azul-safira/ com que me fitas".
    Da mesma maneira, em "Pergunta e Resposta", a dúvida sobre o sentido da poesia diante de um universo vasto e indiferente se dissipa diante da presença mundana, terrena, da mulher amada, afinal o poema só será "Inaudível/ Para quem esteja/ Na galáxia NGC 5128/ Ou na constelação/ de Virgo ou mesmo/ em Ganimedes/ onde felizmente não estás,/ Cláudia Ahimsa,/ poeta e musa do planeta Terra".
    Desnecessário portanto buscar uma resposta à pergunta, pois ela já é conhecida de antemão e anunciada antes mesmo que se inicie a leitura do poema.
    O conhecido bordão do poeta "não quero ter razão, eu quero é ser feliz" --aliás contradito por sua permanente disposição para o debate-- às vezes parece querer dizer algo do tipo "não preciso discutir, porque já sei que estou certo".
    É que a fase atual de Gullar, ao mesmo tempo em que rejeita o absoluto em favor do reconhecimento modesto do valor do parcial, pretende-se ela mesma uma espécie de palavra final, uma fase depois do fim das fases. Como se a perspectiva pós-utópica fosse não ideológica, mero reconhecimento equilibrado e maduro da ordem natural das coisas ("Nem todo mundo pode ser Bill Gates"), contra a qual seria insensato bater-se.
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    As metáforas da linha reta e do espanto se referem a dois poetas diferentes, ou melhor, a dois momentos profundamente distintos da produção de um mesmo poeta
    O conhecido bordão do poeta,"não quero ter razão, eu quero é ser feliz", às vezes parece querer dizer algo do tipo "não preciso discutir, porque já sei que estou certo"
    O espanto seria a figura da criação numa época que já não dispõe de utopias, de horizonte a servir de rumo para a negação transformadora do presente
      Fonte: Folha, 24.11.13

    Marina Abramovic - Performer planeja construção em nome da arte

    Por SARAH LYALL
    Em nome da arte, ela já se pendurou em uma parede, nua, e cortou seu próprio abdome com uma lâmina. Ela se masturbou num museu. Revirou uma pilha de ossos sangrentos, comidos por larvas, num porão fétido. Ficou parada enquanto desconhecidos encostavam uma arma de fogo em sua cabeça e a espetavam com espinhos. Ficou sentada em silêncio durante sete horas por dia enquanto pessoas faziam fila para meditar em sua aura no Museu de Arte Moderna.
    Agora, a performer Marina Abramovic está lançando o projeto que talvez seja o mais ambicioso de sua carreira, que já dura 40 anos. EmHudson, Estado de Nova York, ela pretende erguer o Instituto Marina Abramovic: uma meca para atrair artistas, cientistas e pensadores, além de pessoas dispostas a vestir aventais brancos de laboratório e a se submeter a três horas de purificação de corpo e mente.
    O plano reflete a mudança do rumo da artista nos últimos anos, numa carreira feita de duas partes distintas. Primeira parte: Marina Abramovic, a artista experimental vanguardista e introspectiva nascida em Belgrado, amplia os limites da arte ao se submeter a sofrimentos físicos e mentais. Segunda parte: Marina Abramovic, queridinha das celebridades, fazendo colaborações com astros do cinema, do pop e do hip-hop.
    Tudo isso não tem sido recebido com aclamação universal. Alguns artistas e críticos acusam a performer de cultivar algo que se parece muito com um culto à personalidade.
    Para eles, Abramovic parece estar tão apaixonada pelos holofotes -tão envolvida em dançar com Jay-Z, fazer exercícios de purificação mental com Lady Gaga e curtir a vida com o ator James Franco- que corre o perigo de trair não apenas suas próprias origens, mas também, talvez, a verdadeira natureza da performance.
    O termo descreve, a grosso modo, trabalhos experimentais que não são teatro e que tendem a destacar o relacionamento direto, sem mediação, entre artista e público. Na década de 1970, quando a performance foi reconhecida como gênero artístico legítimo nos EUA, muitos performers adotaram o princípio de que a performance nunca deve ser apresentada mais de uma vez e nunca deve ser convertida em um produto.
    "Tenho muito respeito por Marina, mas acho que o mundo das artes enlouqueceu", comentou Amelia Jones, professora de história da arte na Universidade McGill, em Montreal.
    "Fico me perguntando qual será o próximo passo. Será que ela vai abrir seu próprio pequeno país em algum lugar?"
    Abramovic não se abala com comentários desse tipo.
    "Quando me levantei da cadeira, estava transformada", declarou em entrevista dada em setembro, aludindo ao momento em que ficou em pé ao final de "A Artista Está Presente", sua performance de 2010 no Museu de Arte Moderna. "Eu sabia que a longa duração era a resposta para tudo, para mim. E com isso surgiu a ideia do instituto de forma mais clara."
    Abramovic, 66, disse que o instituto não será uma celebração do trabalho dela, propriamente dito. Será algo maior, um "spa cultural". "Trata-se de algo imaterial, uma colaboração entre arte, ciência, espiritualidade e tecnologia", disse.
    "É quase como uma ideia nova da Bauhaus -de como cabeças diferentes de áreas distintas se reúnem para criar algum tipo de realidade nova."
    Depois de construir o instituto, ela pretende se distanciar dele. A ideia atual é que os visitantes paguem US$ 75 cada um e se comprometam a ficar no local por seis horas, metade das quais devem ser passadas submetendo-se ao "método Abramovic".
    Este, explicou a artista, nasceu de exercícios que ela idealizou para preparar participantes a encenar ou vivenciar arte. Alguns exemplos são nadar nu em um rio gelado, expressar raiva a uma árvore ou passar uma hora tomando um copo de água.
    No instituto, os visitantes vão pressionar seu corpo contra cristais ou, possivelmente, ficar deitados sobre uma plataforma, ou meditar usando vendas sobre os olhos e tampões nas orelhas.
    As possibilidades são infinitas, segundo Abramovic.
    "O artista precisa ser servo da sociedade. O ego é um obstáculo enorme à arte."
    Fonte: NYT.
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    Morre aos 85 o gravurista Gilvan Samico

    Artista despontou ao lado de Suassuna no movimento Armorial, explorando mitos do Nordeste e literatura de cordel
    Um dos maiores nomes do Brasil nessa técnica, pernambucano foi aluno de Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi
    SILAS MARTÍDE SÃO PAULO
    Morreu ontem no Recife, aos 85, o artista Gilvan Samico, vítima de câncer na bexiga. Nos últimos meses, havia sido internado algumas vezes no Real Hospital Português, na capital pernambucana, mas médicos diziam que sua doença já era incurável.
    Seu corpo seria cremado ontem à noite no cemitério Morada da Paz, em Paulista, nos arredores do Recife.
    Um dos maiores nomes da gravura nacional, Samico foi aluno de mestres como Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi.
    Depois de uma temporada na Europa e de voltar a Olinda, onde vivia, se aproximou do escritor Ariano Suassuna e se tornou um dos maiores nomes do movimento Armorial, que criou arte erudita a partir de ícones da cultura popular nordestina.
    Samico se firmou na xilogravura criando alegorias de linhas fortes e de alto contraste ancoradas em mitos e lendas populares. Embora no início tenha se influenciado pelo realismo social de Abelardo da Hora, sua produção depois adotou formas mais depuradas e precisas.
    "Poucas vezes um artista teve tanto rigor e determinação. É um trabalho de uma grandeza, espiritualidade e transcendência raros de ver num artista brasileiro. A prática da gravura dele é uma coisa quase religiosa. Foi um dos grandes artistas entre nós." disse Ivo Mesquita, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
    Para Marcelo Araujo, secretário paulista da Cultura, Samico foi um "homem erudito", que articulou "a grande tradição da gravura ocidental com questões locais do Nordeste".
    "Era o maior xilogravador vivo no país", diz Vilma Eid, da galeria Estação, que representa a obra em São Paulo.
    Suas obras mais recentes, expostas no ano passado, são uma terceira via entre o movimento Armorial e a escuridão que observava na obra de Goeldi, mesclando enredos que "vêm de dentro" e amortecendo a estridência tropical de Olinda em composições mais fechadas. "Comecei a tentar conter a imagem toda dentro do espaço", disse Samico à Folha em junho do ano passado.
    Ele deixa a mulher, Célida, dois filhos e três netos.

    ANÁLISE
    Herdeiro de expressionistas se sobressaiu com obra colorida
    FABIO CYPRIANOCRÍTICO DA FOLHA
    Gilvan Samico foi um dos principais gravuristas brasileiros. Com dragões, serpentes, leões e personagens folclóricos, advindos de narrativas míticas, Samico construiu uma obra única, marcada por conjugar as culturas erudita e popular.
    Essa marca teve início em 1963, quando realizou a gravura "O Boi Feiticeiro e o Cavalo Misterioso", criada a partir da observação dos folhetos de literatura de cordel.
    "Eu já conhecia gravadores populares e não queria imitá-los. Li os folhetos e vi que, no texto sim, havia inspiração, em como eles extrapolam o mundo real, foram as narrativas que me interessaram", disse Samico à Folha, em Olinda, onde vivia, pouco antes de realizar sua maior retrospectiva em São Paulo, na Pinacoteca do Estado, em 2004.
    Contudo, além dos textos imaginativos, Samico ainda apropriou-se do grafismo usado pelos gravadores populares.
    "Observei as capas dos folhetos de cordel, com estruturas rígidas, e abstraí as imagens me utilizando das organizações gráficas", afirmou, ainda, o artista na mesma entrevista.
    "Suzana" (1966) é a obra que marca essa mudança.
    Samico pode ser considerado descendente direto de Lívio Abramo (1903""1992) e Oswaldo Goeldi (1895""1961), os dois gravuristas brasileiros mais influentes da primeira metade do século 20, já que estudou com ambos.
    Contudo, ao contrário das marcas soturnas, herança do expressionismo alemão em Abramo e Goeldi, Samico sobressaiu-se ao criar uma obra colorida, de grandes dimensões e marcada por expressar histórias baseadas em temáticas populares, não só brasileiras, como "A Caça", de 2004.
    Nela, ele inspirou-se em uma lenda contada pelo ensaísta uruguaio Eduardo Galeano, em "Memória do Fogo", sobre a história de um esquimó.
    Desde a década de 1970, Samico passou a criar apenas uma gravura por ano, o que se vê pela intensa dedicação e refinado acabamento de cada uma delas.
    Fonte: Folha, 26.11.13.
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    quarta-feira, 20 de novembro de 2013

    Britânico da vez faz a sua 1ª exposição em São Paulo: Eddie Peake expõe trabalhos inéditos na filial da galeria inglesa White Cube

    Artista apontado pela crítica como promissor ficou conhecido por performance que mistura sexo e futebol
    MARCOS AUGUSTO GONÇALVESDE NOVA YORK
    Na noite da última quinta, uma pequena multidão esperava apertada no saguão do Instituto Suíço, no Soho, em Nova York, pelo início da performance "Endymion", do artista britânico Eddie Peake.
    Com pouco mais de 30 anos, Peake era uma das principais atrações da Performa, prestigiosa bienal dedicada ao gênero, criada por RoseLee Goldberg em 2004.
    O público rapidamente ocupou as margens da sala de dois níveis onde sete bailarinos, quatro pintados de ouro e três de negro, encenaram uma coreografia na qual distanciamento e contato, frieza e erotismo se alternavam ao som eletrônico.
    Peake é o mais jovem a ser representado pela White Cube, galeria de arte do Reino Unido. Ele inaugura hoje a filial paulista, com sua primeira mostra na América do Sul.
    A exposição, com 19 obras inéditas, "Caustic Community (Masks and Mirrors)" apresenta um diálogo entre duas séries de pinturas: as "de máscara" e as "de espelho".
    Peake não é --como ele mesmo diz-- "um expert em cultura brasileira".
    "Mas incidentalmente", conta, "usei um sample de Sarah Vaughan (1924-1990) cantando Dindi', de Tom Jobim (1927-1994), na performance de Nova York".
    Inglês, ele também gosta de futebol --e logo que chegou a São Paulo foi assistir a um decepcionante 0 x 0 entre Corinthians e Vasco.
    "Quando era estudante escrevi um ensaio sobre conexões entre futebol e arte que, honestamente, não deveria ser muito bom, mas lembro de ter lido um monte de coisas sobre futebol brasileiro".
    Uma das razões do sucesso midiático de Peake deve-se a uma combinação de futebol, sexo e voyeurismo.
    Em 2012, encenou a performance "Touch", que consistia numa verdadeira "pelada": cinco jogadores de cada lado disputavam a pelota com uniformes que se resumiam a meias e chuteiras.
    "Há alguns anos eu trabalho com imagens sexuais e temas correlatos. Em parte, isso se deve ao fato de que esse imaginário ressoa em mim de um modo que transcende a linguagem verbal", explica.
    Artista emergente da vez, Peake evita o assunto. Questionado sobre um hype em torno dele, respondeu: "No comments".

    Knispel traz olhar sobre conflitos do século 20 - Pintura

    GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULO

    Gershon Knispel nasceu na Alemanha em 1932 e, com três anos de idade, foi levado pelos pais judeus à Palestina.
    Lembra-se de grupos de refugiados da Segunda Guerra desembarcando entre os árabes, dos conflitos com colonos ingleses, conta que assistiu à criação do Estado de Israel, nos anos 1940.
    Artista curioso e viajante inquieto, veio parar no Brasil nos anos 1950. Aqui, fez amizade com artistas da esquerda, entre eles o dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri e o arquiteto Oscar Niemeyer.
    Suas telas, algumas delas expostas até o dia 5 de janeiro na galeria Marta Traba, no Memorial da América Latina, retratam eventos históricos sob o olhar de um artista que ainda hoje se diz comunista.
    Horrores da guerra, levantes populares, cenas de escravidão desencadeiam-se a partir de pinceladas escuras, tons de cinza e de azul, e também em gravuras. Muitas das imagens inspiram-se em fotos de jornais, aproximando a obra de Knispel de um sentido documental.
    CRUZADAS
    É sobre essa produção que o artista fala, amanhã, às 19h, na galeria Marta Traba. A conversa, com entrada franca, terá participação do curador Fábio Magalhães, do ator Juca de Oliveira e do documentarista Silvio Tendler.
    Entre as histórias, ele conta sobre como criou ilustrações para a edição brasileira do poema "Cruzada das Crianças 1939", de Bertolt Brecht, publicada no Brasil em 1962. E também de como recebeu a notícia de que o dramaturgo alemão havia se interessado pelo trabalho.
    Fonte: Folha, 20.11.13.

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