Nova série de pinturas e tridimensionais, 'Rios Voadores', é inspirada nos cursos d'água de Alter do Chão, no Pará
ÚRSULA PASSOSDE SÃO PAULO
Amanhã será lançado no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, o livro "José Roberto Aguilar - 50 Anos de Arte", sobre a trajetória e a obra do multiartista paulistano.
Pintor, escultor, videoartista, performer e líder de um grupo musical, Aguilar, 72, agora aguarda, "para depois da Copa do Mundo", o lançamento do filme "Anna K.", que ele dirigiu e roteirizou.
Com a atriz Leona Cavalli no papel principal, o longa conta a história de uma mulher que às vezes é possuída por Anna Karenina.
"Ela é meio maluca, às vezes é tomada pelo personagem do romance de Tolstói, que quer levá-la ao suicídio outra vez", diz Aguilar à Folha, em entrevista no seu ateliê na Bela Vista.
Há cerca de dez anos, o artista e sua mulher compraram uma casa em Alter do Chão, no Pará, e ali surgiu a inspiração para a sua nova série de pinturas e trabalhos tridimensionais, "Rios Voadores", que remete aos cursos d'água da região.
"O que me atraiu foi a magia, as pessoas. Aquela região é como se fosse a gênese acontecendo naquele instante, e as pessoas são muito lindas, são paisagens maravilhosas as artérias dos rios."
ENTRE LIVROS
Quando apresentado por críticos de arte, Aguilar é comumente descrito como autodidata, por não ter frequentado escolas de artes.
"Nunca separei artes plásticas da cultura em geral. A minha influência foi muito literária, sempre fui um devorador de livros", conta.
Seus dois escritores favoritos do momento são o chileno Roberto Bolaño e o mestre americano da ficção científica, Philip K. Dick.
"Toda minha pintura foi uma extensão da literatura. Até hoje, os caras me criticam muito porque escrevo nas telas. E me meto em todas, faço videoarte, tem a Banda Performática, tudo isso faz parte do mesmo caudal."
Nos anos 1980, ele formou o grupo musical Aguilar e a Banda Performática, do qual faziam parte, entre outros, os cantores Arnaldo Antunes e Paulo Miklos. Como líder do grupo, Aguilar cantava e fazia performances no palco.
"É a única banda em que o band leader' não sabe nada de música", brinca.
O disco de 1982, com uma de suas pinturas na capa, tinha como carro-chefe a canção "Você Escolheu Errado Seu Super-Herói", mais tarde gravado pelas Frenéticas.
Aguilar tem planos de voltar com a banda, sem a formação original, dessa vez com com "maior desconstrução sonora, sintetizadores".
"Quando você está no palco você desaparece, parece iluminação, você é apenas movimento, ação."
Cercado de telas de todos os tamanhos em sua casa e ateliê, Aguilar diz que hoje é mais difícil o artista iniciante expor do que era quando ele começou, nos anos 1960.
"É uma tortura absurda, porque tem uma fórmula para entrar numa galeria que é altamente alienante."
Já ele expôs em sua primeira Bienal em 1963, aos 22 anos. "A Bienal era democrática, você mandava seu trabalho e era julgado por uma comissão, foi assim que comecei minha carreira", diz. Para Aguilar, o artista faz porque não pode deixar de fazer: "É existencial. Você é escalado por algum gênio da lâmpada a fazer alguma coisa."
Ele ainda não sabe como será a distribuição de "Anna K.".
"A gente é meio cult', tenta ser, pelo menos", declara. "Cult' é um palavrão, uma armadilha, é não ser popular, não ser para a massa. Mas alguém há de ver. A gente não pode ser outra coisa, infelizmente. Cantar a gente não sabe, pintar a gente tenta, então, tem que ter um rótulo."
Obra antecipou a arte de rua e o sonho de uma vanguarda global
SILAS MARTÍDE SÃO PAULODa captura da "aura psíquica" das coisas, como diz o músico Jorge Mautner, a suas "orgias de cores", na descrição do também músico Arnaldo Antunes, a obra de José Roberto Aguilar parece atravessada por um eixo em mutação: a pintura.
Suas primeiras telas, influenciadas pela literatura e marcadas por certo desdém pelo apuro técnico, nascem densas, carregadas de matéria e calcadas na representação de espaços fantásticos.
São estranhos seres humanoides, que se fundem a flores e plantas ou ganham feições animalescas, sempre retratados em ambientes achatados, como se figura e fundo fossem moldados a partir da mesma energia cósmica.
Da mesma forma que a pintura vai perdendo o fôlego na evolução da arte contemporânea, as pinturas de Aguilar também ensaiaram passos para se libertar do quadro.
Ele se livra do peso da tinta acrílica, adota o esmalte sintético, usa pistolas de ar comprimido e aos poucos seus traços, mais diluídos, saltam dos quadros para estampar carros, banheiras e até painéis de alumínio.
Sem qualquer relação com os neoconcretistas, Aguilar acabou trilhando a mesma rota, fundindo arte e vida ao criar uma espécie de proto-grafite, pinturas desgarradas que não se aguentavam dentro da tela.
É como se prenunciasse a arte de rua, encarnando um Jean-Michel Basquiat tropical, macunaímico.
Embora sua pintura não tenha ido às ruas e avenidas, Aguilar se multiplicou em várias frentes, da videoarte à performance e estridentes incursões musicais à frente de sua Banda Performática.
Tanto que o artista chegou a se descrever como um dadaísta. Tocou piano com luvas de boxe na Pinacoteca, em São Paulo, fez uma bailarina sair de uma enorme melancia durante um show e atacou os demônios, entre eles o "bom gosto" e o "esnobismo" que assolavam a arte brasileira nos anos 1970.
Mas podia ser hoje. Aguilar, num trânsito constante entre São Paulo, Londres e Nova York, realizou antes da globalização o sonho de uma vanguarda sem fronteiras, misturando Bukowski aos ensinamentos do hinduísmo.
Mas essa fúria criativa vai perdendo força na última fase da carreira. Com o retorno à pintura nos anos 1980, Aguilar cria telas abarrotadas de grafismos, arabescos mergulhados num gestual que lembra os expressionistas abstratos americanos.
Depois de experimentos mais livres, suas obras mais recentes parecem domesticadas, como se obedecessem a uma cartilha que ele mesmo desprezava de antemão. Aguilar não deixou de ancorar sua produção em referências fecundas, mas parece ter estacionado. Sua aversão ao mercado e a modismos talvez esteja por trás dessa atitude. Mas seus espasmos de outrora fariam bem à cena atual.