quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Jean Cocteau e Flávio de Carvalho - Será que a diversidade de talentos atrapalha?

MARCELO COELHO
Exposição na Faap e documentário mostram o talento disperso do mestre vanguardista
Às vezes o excesso de talentos atrapalha. Melhor ser bom numa coisa só do que em várias. Jean Cocteau (1889-1963) foi poeta, cineasta, desenhista, cenógrafo, teatrólogo e teórico do modernismo. Seus diários trazem amargas reflexões sobre o preço que isso lhe custou.
"Cada livro meu seria capaz de assegurar a reputação inteira de uma pessoa", queixa-se ele, sabendo que sua celebridade dependia "de uns filmes e desenhos à margem de minha obra principal, e de uma lenda a meu respeito, feita de inexatidão e de ouvir dizer".
O brasileiro Flávio de Carvalho (1899-1973) sem dúvida sofreu de uma maldição parecida com a de Cocteau. Pintor, desenhista, arquiteto e "performático" antes que o termo se tornasse moda, Flávio de Carvalho conhece uma fama intermitente, sem nunca alcançar o reconhecimento, digamos, de um Oswald de Andrade ou de uma Tarsila do Amaral.
Em parte, isso é uma questão de cronologia: ele entrou na história um pouquinho tarde, a tempo apenas de aderir ao movimento antropofágico, mas sem participar da Semana de 1922.
O arquiteto e agitador cultural iria empreender sozinho, em 1931 e em 1956, suas famosas "experiências". A primeira, que quase lhe valeu ser linchado, consistia em andar no sentido inverso ao de uma procissão de Corpus Christi.
A outra foi desfilar, de saia e meia arrastão, no centro de São Paulo. Flávio de Carvalho pretendia lançar um novo estilo de moda masculina, mais adequado ao clima tropical.
Na exposição dedicada a Flávio de Carvalho, em cartaz na Faap até dia 19 de janeiro, pode-se ver a blusa idealizada pelo artista. Em duas camadas, uma das quais feita com tela de plástico --daquelas que antigamente se punham nas janelas da cozinha para não entrar mosca--, aquela roupa devia ser desconfortável ao extremo.
Detalhe insignificante, por certo, quando o objetivo é ser moderno a todo custo. A exposição também mostra sua obra arquitetônica. São casas de uma estética limpa, sintética, comparáveis aos trabalhos de Warchavchik e Lúcio Costa.
Nada dessa arquitetura faz pressupor o traço bizarro, as deformações dos lábios e o colorido quase caótico das telas do mesmo autor. São retratos de personalidades conhecidas, como a pianista Yara Bernette, o maestro Eleazar de Carvalho e o compositor Camargo Guarnieri.
Há ali a intenção clara de confundir figura e fundo, rosto do retratado e mosaico de cores atrás dele, produzindo uma sensação de exagero quase diletante. Alguns passos adiante na exposição, e surgem desenhos a nanquim que poderiam perfeitamente ser de algum outro artista, mas nunca do mesmo que pintou os quadros ali do lado.
Com toda a paciência que parece ausente dos quadros a óleo, os desenhos vão compondo, contra um fundo neutro, figuras femininas que ganham volume através de infinitas ramificações de tinta preta, como se Flávio de Carvalho, em vez de mãos, tivesse patas de aranha.
Com tantas personalidades, quase "heterônimos", Flávio de Carvalho não facilitou as tarefas da posteridade. Sua fama é centrífuga, resistente e frágil como uma teia de aranha também.
Tentou, além disso, o cinema. Organizou uma equipe e se meteu no Xingu, com o projeto delirante de filmar "A Deusa Branca", história de uma beldade loura a ser cultuada pelos indígenas. A história dessa empreitada virou tema de um documentário dirigido por Alfeu França, que também descobriu nos arquivos de Flávio de Carvalho os rolos do que foi filmado na expedição.
O documentário teve pré-estreia no Itaú e deve voltar a ser exibido no ano que vem. Além de todo o seu interesse histórico e biográfico, é engraçadíssimo. Alfeu França decidiu manter a mesma impassibilidade que Flávio de Carvalho demonstrava em suas performances, e a narração não move um músculo enquanto mostra, passo a passo, a completa loucura de todo o projeto.
Interessado tanto nas louras (que recrutou com um anúncio de jornal em Porto Alegre) quanto no cinema, o artista entrou numa rivalidade com o indigenista que comandava a expedição. Depois de tentar liquidar o assunto a tiros, Flávio de Carvalho foi abandonado num igarapé e salvo por missionários.
Em meio à inviabilidade e ao improviso totais, o filme mantém a narrativa como numa espécie de exaltação protocolar, ao estilo dos documentários oficiais de 1950, da intrepidez do gênio.
Essa loucura a frio, essa provocação arquitetada a ponta seca, e realizada com ares de rabisco, talvez esteja na raiz da personalidade de Flávio de Carvalho. Haverá mais exposições sobre ele no ano que vem; falta muito, ainda, para se ter um retrato completo de seu talento disperso, feito de coragem e inconstância.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Mostra no Rio revê obra de Antonio Manuel: Artista célebre por invadir museu nu em 1970 quer se distanciar de seu passado político

DO ENVIADO AO RIO
É uma explosão calculada. Fragmentos de carvão estão pendurados do teto como meteoritos congelados no momento em que se espatifaram contra a atmosfera. Eles ficam imóveis, flutuando na ponta de fios de náilon, até que alguém esbarre neles.
"Não pode ir entrando direto aqui, senão mancha", diz Antonio Manuel, artista que criou a instalação há quase 20 anos e agora remonta a obra em mostra individual no Museu de Arte Moderna do Rio. "É uma coisa para o corpo, uma selva impenetrável."
De certa forma, desde que Manuel invadiu pelado o vernissage do Salão de Arte Moderna nesse mesmo museu em 1970, apresentando o próprio corpo como obra de arte, seu trabalho não deixou de pensar no embate --violento-- entre corpo e espaço.
Ele não quis mostrar fotografias da ação na mostra atual, mas suas instalações quase todas parecem ter como pano de fundo noções de fragilidade e equilíbrio, ou uma síntese estranha entre sensações de violência e paz.
Logo na entrada, Manuel ergueu muros de alvenaria em cores vibrantes. Construídas dentro do museu, as estruturas foram então marretadas e têm buracos que deixam ver as paredes seguintes.
"Elas viram uma passagem", descreve o artista. "É algo magnético. Você é puxado para dentro dos buracos."
Do lado de lá, além das barreiras, uma série de obras torna mais sutil essa reflexão, ao anular o magnetismo de imagens trágicas famosas.
Duas delas são peças novas que retomam as célebres intervenções sobre jornal que Manuel fez nos anos 1960, em repúdio ao regime militar.
Enquanto um vídeo mostra manchetes recentes sobre "miséria e violência", gotas d'água pingam sobre a tela, embaçando a imagem.
Manuel também encheu três tanques de água em que mergulhou páginas de jornal e fotografias de chacinas, criando um laboratório fotográfico às avessas, em que as imagens se apagam na claridade em vez de se fixarem.
Esse apagamento se radicaliza na última peça da mostra --um jardim de estruturas metálicas vazadas que lembram a diagramação de páginas de jornal, sem nada no lugar de textos e imagens.
Também tem a ver com um esforço do artista em se distanciar do próprio passado para mostrar outras vertentes de sua obra. Embora ainda ancoradas na política, suas peças buscam maior equilíbrio e pureza formal.
"Tudo é dirigido ao corpo", diz Manuel. "Não quero ser só o artista que ficou nu. Mas esse é o espaço onde isso ocorreu. E, pensando bem, estou nu aqui de novo."

    Criação de museus particulares é 'febre': Com governos em crise, instituições privadas ganham influência, além de alimentarem alta de preços nas obras

    Cresce o número de super-ricos que querem abrir seu próprio museu, diz consultor de colecionadores
    DO ENVIADO À CIDADE DO MÉXICO
    Museus de bilionários como o Jumex, na Cidade do México, ou o Crystal Bridges, que Alice Walton, a herdeira do Wal-Mart, construiu em Bentonville, nos Estados Unidos, ou mesmo o Instituto Inhotim, em Brumadinho, no interior de Minas Gerais, não vão parar de surgir tão cedo.
    "Vai virar uma febre. Vamos ver muitos museus privados abrindo", diz João Correia, sócio da empresa de consultoria Art Options, que atende colecionadores. "É uma tendência. Já temos dois clientes pensando nisso."
    São milionários que podem seguir os passos de Bernardo Paz, magnata do minério que transformou uma fazenda no maior museu a céu aberto no mundo, e João Carlos Figueiredo Ferraz, que abriu seu próprio --mais modesto-- instituto em Ribeirão Preto, no interior paulista.
    "Isso não nasceu com nenhum grande objetivo de fazer algo de interesse público", diz Ferraz. "Uma hora só me dei conta que as coisas que mais me seduziam estavam guardadas em caixas."
    Paz foi tão radical que em alguns casos pôs suas obras de arte no meio da floresta.
    "Não comecei uma coleção para meus amigos. Isso é só acúmulo", diz o mineiro. "Queremos criar as condições para que as obras mais complexas possam ser exibidas em caráter permanente."
    Nesse ponto, há generosidade nesses projetos faraônicos, que tornam visíveis ao público tesouros da arte até então pouco acessíveis.
    Mas também é fato que, quando mostradas, essas peças se valorizam ainda mais. A coleção de Eugenio López, que tem 2.700 obras, já triplicou de valor segundo o próprio dono, saltando de R$ 186 milhões para R$ 558 milhões.
    Cifras tendem a aumentar também com cada abertura de museu, num jogo de ostentação que turbina o mercado e transforma colecionadores em celebridades da vez.
    É o caso do francês François Pinault, dono de dois museus em Veneza --um deles é um palácio restaurado pelo arquiteto japonês Tadao Ando. Pinault completou o pacote da fama ao se casar com a atriz mexicana Salma Hayek, mais um poderoso ímã de famosos para as suas festas.

    terça-feira, 3 de dezembro de 2013

    Lei nazista impede devolução de obras de arte

    Por MELISSA EDDY e ALISON SMALE
    HALLE, Alemanha - Wolfgang Büche ficou surpreso quando, em novembro, uma aquarela apreendida pelos nazistas em um pequeno museu do qual ele é curador em Halle, cidade do leste da Alemanha, ressurgiu, como parte de um vasto acervo encontrado em um apartamento de Munique.
    Mas sua empolgação ao ver o trabalho, "Paisagem com Cavalos", um possível estudo para uma pintura do expressionista alemão Franz Marc em 1911, se viu temperada por um fato que ele define como "irrefutável": a lei de 1938 que autorizou os nazistas a apreender o quadro -e milhares de outras peças de arte moderna classificadas como "degeneradas" porque Hitler as via como tendo natureza judaica ou não germânica- continua em vigor até hoje.
    Autoridades alemãs acreditam que 380 obras confiscadas de museus públicos alemães sob essa lei da era nazista podem estar entre os 1.200 quadros, litografias e desenhos encontrados no apartamento de Cornelius Gurlitt, 80, filho de um marchand da era nazista.
    A existência da lei torna improvável que o museu de Büche ou dezenas de outros museus da Alemanha possam reivindicar a restituição de suas obras, dizem especialistas em questões judiciais e autoridades alemãs.
    E é provável que a lei continue em vigor.
    Os nazistas venderam milhares de obras no mercado aberto de arte para encher os cofres do país durante a guerra.
    Revogar ou reformar a lei de 1938 poderia colocar em questão uma rede intrincada de transações de arte envolvendo essas obras, que vêm sendo negociadas em todo o mundo desde então, algo que até mesmo muitos curadores de museus, como Büche, preferem não ter de encarar.
    Nenhum governo alemão tentou repelir essa lei da era nazista. "A situação legal é relativamente óbvia e clara", disse Büche, que supervisiona a coleção da Fundação Moritzburg, em Halle. "Só podemos recomprá-las de volta".
    De fato, as obras confiscadas dos museus públicos alemães estão em categoria separada das obras de proprietários privados judeus que foram confiscadas ou que seus donos foram forçados a vender. Os herdeiros desses proprietários ainda podem ter direito legal às peças em questão.
    Mas, para museus como o de Büche, o percurso legal é muito mais complicado. Além disso, se Gurlitt for capaz de provar que herdou as obras legalmente, elas bem podem continuar a ser sua propriedade, a não ser que surja um acordo com o governo.
    As autoridades alemãs estão sendo criticadas pela condução do caso -especialmente por terem mantido segredo durante dois anos sobre a descoberta das obras. Há dúvidas se elas têm ou não direito a confiscar a coleção completa. Gurlitt não foi acusado de crime algum.
    O promotor estadual de Augsburg, Baviera, onde o caso está sendo conduzido, declarou recentemente que instaria o grupo de trabalho apontado para esclarecer a proveniência da coleção a informar rapidamente a ele que peças pertencem irrefutavelmente a Gurlitt, para que possam ser restituídas ao proprietário. Gurlitt deixou claro que as quer de volta.
    Büche, o curador, também gostaria de ter de volta as peças de seu museu.
    Mas, em suas três décadas no museu Moritzburg, ele só pôde celebrar o retorno de 16 itens do pré-guerra, um décimo da coleção que no passado esteve entre as mais impressionantes do país.
    Algumas das peças que pertenceram ao museu hoje integram o acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York, depois de serem negociadas no mercado aberto.
    Há quem advirta sobre as implicações mais amplas de anular a lei de 1938. "Se essa lei for anulada, então todas as transações teriam de ser anuladas", diz Sabine Rudolph, advogada especialista em restituição de arte.
    "Se um museu que reconhece um trabalho na coleção de Gurlitt insistir em tê-lo de volta, seus dirigentes podem perceber de repente que têm em seu acervo diversas obras que um dia pertenceram a outros museus e que eles também teriam de restituir."
    Fonte: NYT, 03.12.13.