segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Os vernisseiros

CHICO FELITTI - COLUNISTA DA "SÃOPAULO"

"É um colecionador", diz o dono da galeria apontando para o sujeito vestido com uma camisa de couro de crocodilo e cuja cabeça é cortada ao meio por uma faixa de adesivo preto, imitando tatuagem. Quase: João Índio, 59, é recepcionista do Paço das Artes e coleciona na mente imagens que vê quase diariamente em vernissages.
Índio faz parte de um grupo mais ou menos organizado de cerca de 15 pessoas que frequentam eventos de arte na maioria das noites. "Vou a quatro ou cinco por semana", diz Renata Paccola, 51, poeta (o último livro, "Grilhões de Vidro", foi publicado em 2003) e "vernisseira".
"Faz 20 anos que vou a este tipo de evento, de segunda a quinta", explica ela na abertura da mostra de Rivane Neuenschwander no MAM.
O museu do parque Ibirapuera não exige ingresso para seus rega-bofes e funcionários já conhecem a trupe pelo rosto. A chefia dali nutre alguma simpatia por eles. É recíproca: "Tem espumante aqui, coisa rara hoje em dia", diz Paccola, brindando.
As festas, dizem em consenso, decaem desde os anos 1990. "Tinha banquete na Fiesp, não era coquetel", conta Índio. Mas ainda se fazem boas aberturas: "É quando tem patrocínio de marcas".
Como a estreia da Tag Gallery no centro, há três semanas, que tinha logomarcas de uma cervejaria e de um uísque em seu convite. A bebida era à vontade, uma rara Meca para os "vernisseiros".
"É uma forma de fazer amigos", diz o fotógrafo Wilson Rodrigues, 53, com quem aFolha trombou em cinco vernissages das últimas três semanas. Ele nega que os comes e bebes são o que o motiva a sair.
Já Índio admite: "Sou considerado um boca-livre, se bem que estou de dieta, então mais bebo do que como", diz ele, usando a mão que não está tomada pela taça de champanhe rosé para mostrar a forma física.
Para ser um "vernisseiro", inverte-se a lógica laboral: o "fim de semana" é composto por segunda, terça e quarta, com mais eventos. Sábado é o dia mais morto da semana.
O grupo diz não se comunicar antes de sair, mas acaba indo quase sempre à mesma boca-livre artística, pinçada de guias on-line.
Quem ensina é a artista plástica Ingrid Müller, 70.
Na terça, 16, ela protagonizou uma interação com um artista da Galeria André, nos Jardins. Ia em direção à última cumbuca de sopa de abóbora com roquefort que a garçonete oferecia. A mão do artista Antonio Peticov, que pintou algumas das telas ali expostas, chegava pelo outro lado com velocidade igual. Antes da colisão, Peticov se desculpou e deixou a colega levar a derradeira entrada.
VOCÊ TEM CONVITE?
Dois curadores disseram achá-los "simpáticos". Outros três disseram os tomar por colecionadores. Afirmam que nunca foram barrados.
"Mas tem coisa que não conseguimos, como o jantar da Bienal [pré-estreia só para portadores de convite nominal, como o empresário Abilio Diniz e a ministra Marta Suplicy]. Aliás, você tem convite?", perguntou Müller.
Outra integrante, que se identificou apenas como Cristina (a maioria não quis dar entrevista), liga a relevância das obras com a do coquetel.
"A gente está falando da importância da exposição, é evidente. É um desprestígio servir coisas ruins durante a abertura." Enquanto ela fala, outro homem do grupo, João, se aproxima de Renata (a poeta) e cochicha: "Tem carpaccio". Os dois rumam às telas próximas à porta que garçons usam para entrar no salão.
Sozinho, num canto, Índio diz sobre os "colegas": "Eu os conheço artificialmente". Paccola discorda: "Há uma cumplicidade. A mãe de um morreu e fomos ao velório".
Mas as "inscrições" para "vernisseiros" estão fechadas. "Não vai escrever que dá para entrar sem convite", pede Renata, "ou todo mundo vai vir e não vai sobrar nada".

Aberturas minguam e pedem até que se leve o próprio vinho

DE SÃO PAULO
Para o infortúnio dos "vernisseiros", seis instituições de arte ouvidas pela Folhaadmitiram, pedindo para não ser nomeadas, que diminuíram gastos com comes e bebes nos últimos dois anos.
Uma queixa é unânime na trupe: a Caixa Cultural, no centro, teria quase acabado com eventos. Procurado, o museu não se pronunciou.
Cansada de ouvir que não poderia ter várias aberturas por ano na galeria grande que a representava ("Falaram que tinha eleição, Carnaval, não sei mais o quê!"), a artista plástica Sandra Martinelli, 50, decidiu fazer uma vernissage de si mesma há um mês.
Pendurou as obras em um estacionamento da Vila Madalena e mandou convites pedindo que cada convidado levasse seu próprio vinho e copo. "Funcionou bem. Afinal, o foco tem de ser a arte."

 Folha, 26.09.14

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Mostra com obras superficiais deveria se chamar 'Truque'

CRÍTICA ARTES VISUAIS

FABIO CYPRIANO

CRÍTICO DA FOLHA
O funcionamento de grandes espaços culturais criou um mecanismo um tanto perverso dentro do atual sistema das artes visuais no país. Com uma programação que funciona por meio de editais, esses locais delegaram a produtores culturais a apresentação de projetos, deixando de pensar uma programação coerente, baseada na pesquisa e na continuidade, como ocorre em grandes instituições.
Com isso, na maioria dos casos, a lógica do marketing domina a programação desses espaços, como o Centro Cultural Banco do Brasil, e as exposições programadas visam, em primeiro lugar, o maior público possível, independentemente do conteúdo.
"Ciclo", exposição em cartaz no CCBB paulista, é o exemplo mais bem acabado dessa política de terceirização da cultura.
Organizada por Marcello Dantas, competente produtor cultural que, por conta desse sistema, foi alçado a curador, a mostra é uma reunião de obras que visam criar impacto através de uma operação simples: a sobreposição de objetos semelhantes em grandes quantidades. É uma prática de efeito fácil e rápido.
Na fachada do CCBB está "Nuvem de Parede", de Michael Sailstorfer, composta por dezenas de câmeras de ar de pneu. Já no saguão, estão outras dezenas de bancos sobrepostos, em "O Empurrão de Sansão, ou Composição", de Ryan Gander. Lá também está o monumental lustre com absorventes, "A Noiva", de Joana Vasconcelos.
No cofre do antigo banco, 10 mil palitinhos compõem "Modelo para a Sobrevivência", de Julia Castagno, enquanto, pisos acima, Tara Donovan cria uma paisagem com 700 mil copos de plástico.
As 14 obras da mostra revelam-se, assim, absolutamente superficiais, já que sua conexão é justamente o acúmulo de materiais. Dantas, no breve texto da mostra, aponta Marcel Duchamp como o precursor dessa operação quando, há cem anos, levou uma roda de bicicleta para o espaço expositivo.
A questão é que Duchamp, com essa simples atitude, trouxe um novo caminho para a arte. "Ciclo", ao contrário, apenas reforça o estado da sociedade de espetáculo que evita qualquer reflexão. O nome mais adequado para a mostra seria "Truque".
CICLO
ONDE CCBB, r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651
QUANDO de qua. a seg., das 9h às 21h. Até 27/10
QUANTO grátis
AVALIAÇÃO ruim


Folha, 23.09.2014.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Cineasta destacado, Julian Schnabel tem pintura reconhecida

Telas do diretor de 'O Escafandro e a Borboleta' passam por momento de valorização crítica e chegam ao Masp

Mostra tem telas dos anos 1980 até hoje, algumas delas pintadas sobre lona de caminhão e até em velas de barcos
SILAS MARTÍDE SÃO PAULO
Quando Julian Schnabel despontou no mundo da arte, no fim dos anos 1970, críticos não sabiam o que dizer sobre sua obra, em especial suas pinturas sobre pratos quebrados.
Uma única certeza era ligar sua aparição --tão espalhafatosa e espetacular quanto os altos preços de suas obras-- a uma época de crise de valores, com a arte entrando de vez no mundo das finanças.
Não é diferente de hoje. Suas famosas pinturas sobre pratos quebrados não estão em sua mostra agora no Masp, mas estão lá composições pintadas sobre lonas de caminhão e velas de barco.
Schnabel, mais conhecido do público por ter dirigido filmes como "O Escafandro e a Borboleta" e "Antes do Anoitecer", já era pintor antes de sua incursão no cinema.
Mas agora ele voltou a pintar, despertando reações semelhantes às dos anos 1970, ou seja, voltou a estar na moda, para o bem ou para o mal.
Depois de uma exposição no início deste ano na galeria Gagosian, em Nova York, Schnabel chega ao Masp chancelado pela crítica internacional, que enfim reconheceu sua influência sobre as novas gerações de pintores.
"Venho fazendo minhas pinturas do mesmo jeito nos últimos 40 anos, mas os gostos vão mudando", diz Schnabel. "Esse reconhecimento poderia ter acontecido décadas atrás, mas é agora que novos artistas parecem estar olhando mais a minha obra."
E essa obra, Schnabel gosta de frisar, surge da liberdade na escolha dos materiais, ou de coisas vistas de relance que ele traduz em telas carregadas de cor e certa violência nos gestos, como se as pinturas surgissem em surtos espontâneos de criatividade.
Sua ideia de pintar sobre cacos de pratos, por exemplo, veio da visão do parque Güell, em Barcelona, famoso pelos mosaicos de porcelana colorida inventados por Gaudí.
Numa viagem ao Cairo, Schnabel convenceu pescadores a venderem as velas de seus barcos para que ele usasse como tela em suas pinturas, enquanto lonas de caminhão em forma de cruz são a base para a série de obras que criou em homenagem ao amigo Cy Twombly, pintor americano morto há três anos.
"Queria materiais que me deixassem fazer pinceladas maiores", conta Schnabel. "São coisas utilitárias, usadas para cobrir e esconder objetos, como as lonas, que abrem caminhos para novos significados na minha obra."
De fato, Schnabel não parece esconder nada. A transparência de seus processos e a crueza dos materiais estão em sintonia com o seu desejo expansivo, às vezes desesperado, de contar histórias.
No caso da série sobre Twombly, Schnabel retoma a ideia do artista para quem as pinturas eram arenas cheias de referências a heróis da literatura, ou seja, a pintura como espécie de campo magnético e transcendental, capaz de digerir outras artes.
Nesse ponto, seu cinema não está distante da obra plástica. Schnabel, que já contou em filme a vida do poeta cubano Reinaldo Arenas e do artista americano Jean-Michel Basquiat, diz que retratar alguém numa pintura não está distante disso.
"Quando você retrata alguém, é sua responsabilidade não deixar aquela imagem escapar", afirma Schnabel. "É como atores em cena, que naquele momento também estão muito vulneráveis. Vejo isso como ir para a guerra com alguém, sendo que o objetivo é voltar vivo para casa."

    quarta-feira, 3 de setembro de 2014

    A arte da fuga

    Quem leva a sério a opinião política dos artistas? Eu não. Deixei de o fazer com a ruína dos regimes totalitários. Nas pinturas de Isaak Brodsky (sobre Lênin); nos filmes de Leni Riefenstahl (sobre Hitler); e nas telas de Alessandro Bruschetti (sobre Mussolini), a "arte política" deixou um testamento vergonhoso, que passou pela legitimação –melhor: pela exaltação das virtudes de psicopatas. Exceções, sempre houve. Mas o casamento entre arte e política normalmente deu maus resultados. A "arte pela arte" não é apenas um bordão do século 19. É um conselho prudente para quem tem pretensões de se dedicar a ela.
    Por isso ri alto com a carta aberta que 55 artistas enviaram à Fundação Bienal de São Paulo.
    Ponto prévio: nenhuma pessoa adulta escreve cartas abertas em manada; quando falamos de artistas, ou pretensos artistas, a coisa ainda soa pior. Ou a arte vive da autonomia individual, ou não vive. Só covardes assinam em manada.
    Mas os 55 revoltaram-se com o apoio financeiro que Israel concedeu à Bienal. Não querem dinheiro judeu porque acreditam que esse dinheiro, depois da guerra em Gaza, conspurca as suas integridades estéticas.
    Se o dinheiro fosse da Autoridade Palestina, ou até do Hamas, talvez a conversa fosse outra. Não é. É de Israel.
    Não vou regressar ao conflito entre Israel e o Hamas, que vive agora a sua trégua clássica antes do próximo confronto. Enquanto o mundo não entender direito a natureza islamita e jihadista do Hamas, não vale a pena gastar latim com o assunto.
    Mas talvez não seja inútil fazer uma pergunta meramente teórica: de que vive a arte, afinal?
    Arrisco uma resposta: a arte vive da liberdade. Um clichê sem grande importância?
    Errado. Parafraseando Saul Bellow, eu gostaria de conhecer o Balzac dos zulus. Não conheço. Se Nova York, Londres ou Berlim são centros de excelência estética, isso deve-se à estabilidade política e à riqueza material de tais cidades.
    E mesmo que a arte seja "engajada", o que já me parece uma corruptela da sua vocação, convém que o "engajamento" seja direcionado para os alvos certos.
    Os 55 artistas da Bienal falham nos dois planos.
    Começando pela liberdade, basta consultar os rankings da ONG Freedom House para 2014. Não vou cansar o leitor com números e mais números. Resumindo, digo apenas: Israel é o único país do Oriente Médio e do norte de África considerado "livre". O resto oscila entre "parcialmente livres" (Tunísia, Líbia, Kuait) e "não livres" (Iraque, Irã, Arábia Saudita).
    E, para ficarmos na vizinhança de Israel, é a desgraça: Jordânia, Egito ou Síria continuam antros de repressão. Os 55 artistas, que deveriam defender a liberdade de expressão como quem defende o oxigênio, assinam uma carta contra o único país que respeita essa liberdade em todo o Oriente Médio.
    E sobre os direitos humanos? Fato: Israel merece várias linhas de condenação nos relatórios anuais da Human Rights Watch, outra ONG independente. Mas nada que se compare ao comportamento dos mesmos países do Oriente Médio, para não falar da vizinhança em volta.
    Um bom indicador do respeito pelos direitos humanos está no tema clássico da pena de morte. Israel aboliu-a para crimes civis. Do Egito à Jordânia, do Líbano à Autoridade Palestina, a execução judicial continua a verificar-se.
    Digo "judicial" porque o Hamas, todos o sabemos, prefere fazer as coisas de forma "extrajudicial", fuzilando traidores no meio da rua.
    De resto, será preciso dissertar sobre a diferença entre os "direitos" das mulheres ou dos homossexuais em Israel e nos países em volta? Será preciso recordar o histórico de amputações de membros e lapidações de adúlteras que existe por aquelas bandas?
    E será preciso acrescentar alguma coisa à selvageria do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que pelo visto não incomoda os 55 artistas da Bienal de São Paulo?
    Criticar Israel é legítimo. Nenhum governo está acima da crítica. Transformar Israel em pária internacional é uma forma de cegueira antissemita.
    Eu só respeitarei a "coragem" dos 55 artistas no dia em que eles viajarem para Bagdá, Riad ou Gaza e escreverem uma carta contra os governos locais. Em defesa da liberdade e dos "direitos humanos". Folha, 02.09.2014.
    Isso, claro, se ainda tiverem mãos para escrever.
    joão pereira coutinho
    João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record) e é também autor do ensaio 'As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários' (3 Estrelas). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

    Morre Sergio Rodrigues, pioneiro do design nacional: Criador da poltrona Mole tinha 86 anos e morreu em sua casa, no Rio


    Peças do arquiteto vêm se valorizando nos últimos anos como ícones de brasilidade no mercado internacional

    SILAS MARTÍDE SÃO PAULO
    Um dos maiores nomes do design brasileiro, criador da famosa poltrona Mole, Sergio Rodrigues morreu, aos 86 anos, na manhã desta segunda (1º), em seu apartamento, no Rio. Segundo a mulher do designer, a causa da morte foi metástase de um câncer que ele enfrentava havia 12 anos.
    Nascido em 1927, Rodrigues começou sua carreira como arquiteto, tendo trabalhado no projeto do Centro Cívico de Curitiba. Mesmo com cerca de 200 obras construídas em todo o país, a maioria delas casas, Rodrigues se firmou como designer de móveis.
    No entanto, suas estratégias de construção tanto em móveis quanto nos prédios que criou eram muito próximas, pensando sempre na natureza dos encaixes de madeira, que ele comparava ao uso de letras num alfabeto.
    "Isso caracteriza bem os meus móveis", disse Rodrigues à Folha em janeiro deste ano, às vésperas de abrir uma exposição em Nova York. "É a minha maneira de encarar a madeira, os encaixes."
    Rodrigues despontou no cenário do design nacional com sua poltrona Mole, lançada em 1957, e estava em diálogo com os maiores pensadores do modernismo arquitetônico no país, tendo sido escalado por Lucio Costa para criar muitos dos móveis dos prédios de Brasília.
    Desde então, seus móveis em madeiras do país são considerados ícones de brasilidade, em especial por romper com os padrões europeus que eram copiados na indústria moveleira nacional até a década de 1940. Com a descoberta do mobiliário moderno brasileiro pelo mercado estrangeiro, Rodrigues virou uma referência do país.
    Um dos pontos fortes de sua obra é a fusão do vocabulário já consolidado pelo modernismo internacional, em especial o uso expressivo da madeira nos móveis escandinavos, e elementos da cultura indígena do Brasil, enfatizando as linhas orgânicas.
    "Sou um pouco modesto, mas sei que a poltrona Mole continua sendo um ícone", disse Rodrigues na entrevista em janeiro. "Tem aquele estofamento de couro para você se atirar. Ela ainda causa um certo espanto."
    Mesmo sendo a maior obra de Rodrigues, a poltrona Mole, que está até no acervo do MoMA, em Nova York, ficou de fora de novas encomendas de móveis do designer feitas na comemoração dos 50 anos de Brasília, há quatro anos. Folha, 02.09.2014.
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    Dívida da Yukos com acionistas põe obras de arte russas em perigo: Gazeta Russa Como resultado de uma decisão do Tribunal da Haia, a Rússia deverá pagar US$ 50 bilhões para os antigos acionistas da empresa Yukos. Quadros e esculturas russos expostas no exterior poderão ser arrestadas para o pagamento da dívida? Afinal, já houve precedentes. A Gazeta Russa foi atrás da resposta

     10/08/2014 Dmítri Romendik 

    Dívida da Yukos com acionistas põe obras de arte russas em perigo
    Garantias governamentais outorgadas aos museus dão segurança aos objetos de valor Foto: Reuters

    O Tribunal Permanente de Arbitragem da Haia obrigou a Rússia a pagar US$ 50 bilhões para os antigos acionistas da petroleira Yukos Oil Company.
    Em breve será julgada a apelação e se a decisão do Tribunal for confirmada quase qualquer propriedade russa poderá ser arrestada em muitos países por pedido dos requerentes. Isso significa que as obras de arte  das coleções dos museus estatais russos exibidas no exterior poderão ser confiscadas? Afinal, já houve precedentes.
    Noga x Rússia
    Em 2005, a coleção do Museu Pushkin foi arrestada a pedido da empresa Suíça, Noga. Cinquenta e cinco pinturas de artistas franceses, de clássicos do século 18 e  até de Pablo Picasso estavam expostas na cidade de Martigny. Quando, após a exposição, as pinturas já  tinham sido embaladas para ser enviadas a Moscou, os oficiais de justiça as detiveram. O arresto foi realizado com base na decisão do Tribunal de Arbitragem de Estocolmo, de 1997, que tomou a decisão em favor da Noga em sua ação judicial contra a Rússia. 
    “O caso do arresto dos quadros do Museu Pushkin foi um erro judicial. As garantias de segurança da exposição foram outorgadas pelas autoridades do cantão de Valais e não pelo governo federal da Suíça. Assim, quando o caminhão com os quadros atravessou a fronteira desse cantão, as garantias estatais deixaram de funcionar, e a decisão judicial entrou em vigor", diz o diretor geral do Sotheby’s na Rússia, Mikhail Kamenski.
    Mesmo que os quadros tenham sido devolvidos ao museu russo, o caso gerou muita preocupação.
    Nesse caso, houve simplesmente o registro negligente de documentos. Antes do envio da exposição era necessário obter garantias do governo suíço e não apenas da região.
    “De acordo com o procedimento existente, o envio de exposição de museu estatal só é autorizado caso o país recipiente dessa exposição dê garantia. Isso significa que em qualquer circunstância os objetos de valor importados serão devolvidos", explica Kamenski. Assim, as garantias estatais são mais importantes do que qualquer julgamento do tribunal. Se essas garantias foram dadas, nenhum oficial de justiça pode contrariá-las.
    Rabinos x Rússia 
    Ilia Wolf, diretor geral do Fineartway, empresa que atua na área do transporte internacional de obras de arte, está de acordo com Kamenski. Ele também assegurou a segurança das exposições no exterior nesse período –principalmente  os quadros de Kazimir Malevich da coleção do Museu russo na Galeria Tate, em Londres, bem como as exposições permanentes da coleção Hermitage expostas na filial de Amsterdã. Essas obras estão expostas sob as garantias outorgadas pelo Estado, portanto, podem voltar para a Rússia sem problemas, assim como em ocasiões anteriores, pois de vez em quando  museus russos realizam exposições no exterior. 
    No entanto, Wolf não tem certeza se as garantias de governos continuarão a ser outorgadas no futuro.
    "Se a decisão da arbitragem da Haia entrar em vigor, talvez nós tenhamos com  alguns países uma situação parecida com aquela que está acontecendo no momento com os Estados Unidos por causa da decisão do tribunal americano sobre  biblioteca de Chabad-Lubavitch. Agora, os Estados Unidos não dão garantias de Estado e assim as exposições dos museus estatais russos não vão mais para lá. Por isso, é muito difícil prever a situação.”
    Em 2006, vários rabinos da organização Chabad entraram com petição no tribunal federal de Washington. Eles questionaram o direito da propriedade da Rússia sobre a biblioteca de livros religiosos de Schneerson, que continua no país após quase 100 anos desde a emigração de seu proprietário. Em 2010, o Tribunal decidiu em favor dos rabinos e impôs multa de US$ 50 mil por dia, que a Rússia terá que pagar até a execução de sua decisão. A Rússia se recusou a devolver os livros e isso suspendeu o intercâmbio de museus estatais entre os dois países. 
    É claro que as garantias governamentais outorgadas aos museus dão segurança aos  objetos de valor. No entanto, no exemplo dos Estados Unidos, vimos que em casos semelhantes, o governo pode se recusar a fornecer esse tipo de garantias. O coproprietário da galeria moscovita Triumph, Dmítri Hankin, compartilhou suas preocupações, pois devido a esses riscos, o Ministério da Cultura pode se recusar a autorizar a organização de exposições no exterior, o que poderia levar à suspensão do intercâmbio entre museus.
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    “Falta interatividade aos museus antigos”, diz diretora do Museu Pushkin: Nova diretora do museu moscovita defende a universalização da arte, inclusive por meios eletrônicos

    “Falta interatividade aos museus antigos”, diz diretora do Museu Pushkin
    Loshak pretende aproximar o Museu Pushkin dos padrões ocidentais modernos Foto: Kommersant
    Marina Lochak, a nova diretora do Museu Pushkin, e Irina Antonova, que dirigiu o espaço por mais de meio século, são pessoas de formações, gerações e pontos de vista diferentes. Lochak guarda convicções liberais e tem uma grande experiência no campo da divulgação artística, o que revelou logo de cara.
    “Ainda antes de tomar posse, a primeira coisa que fiz foi colocar uma pergunta no Facebook: O que é que vale a pena mudar? A população reagiu o melhor possível, com propostas concretas e análise da situação. Na minha opinião, é essa interatividade que falta ao museu Púchkin, como a todos os museus antigos”, disse Lochak à Gazeta Russa. “Para tornar nosso museu mais moderno e atualizado, são necessárias medidas simples e concretas, como entender que o museu é para todos, não só para os que beneficiaram de uma educação em artes.”
    Lochak é especialista em Arte Contemporânea e vanguardismo russo, o que aparentemente não condiz com o cargo de diretora de um museu acadêmico que abriga uma coleção ímpar de pinturas do Renascimento e do século 19.
    “Nos museus de arte moderna há algo de laboratório, mas o nosso é diferente. Estamos falando sobre uma arte que ganhou um valor museológico indiscutível, sobre artistas que já entraram para a história”, disse a diretora, que cultiva certa predileção por curadores de arte que congregam reflexões fundindo história e arte. “Gosto especialmente de um deles, Jean Hubert Martin, admirável curador que promove uma interação entre arte antiga e moderna”, acrescentou.
    Apesar de sua versatilidade, energia e visão moderna, Lochak não pensa em mudanças radicais. “Sem dúvida, a minha experiência profissional tem mais a ver com museus de formas de instalação mais abertas e mutáveis. Agora me deparei com uma realidade muito peculiar”, disse. Em breve, será iniciada a construção de uma ampla ala para o museu, “do qual dependerá a concepção do museu no futuro”.
    Antes disso, Lochak quer aprimorar a conservação e criação de catálogos eletrônicos, bem como desenvolver uma versão virtual do museu.
    Acesso à arte 
    Um pouco antes de Lochak ser indicada ao posto de diretora, uma discussão entre os museus Hermitage e Pushkin atraiu a atenção pública. O motivo era a recuperação do Museu da Nova Arte Ocidental (MNAO), cuja coleção foi repartida entre os dois museus. Na altura, Antónova sugeriu que as obras fossem reunidas, mas a proposta foi recusada.
    O presidente Vladímir Pútin e o ministro da Cultura, Medínski, anunciaram oficialmente que o MNAO não será recuperado, e os dois museus permanecerão como estão.  
    “Sonho com que haja um museu desses, pois estou certa de que transformaria Moscou em um polo de apreciadores do modernismo ocidental. No entanto, estamos perante uma questão que deve ser resolvida por aqueles que são responsáveis pela estratégia estatal do desenvolvimento cultural do país”, disse Lochak.
    Quanto à comunidade museológica, cabe-lhe assumir apenas os papéis como especialistas, garante a diretora do Museu Pushkin. “O mesmo pode-se dizer sobre a restituição de valores museológicos. É de conhecimento de todos que, no Museu Púchkin, há muitas peças de arte que são troféus de guerra. Este é um problema estatal e não museológico. Acho que a abertura máxima facilitaria a resolução desta questão: quanto mais exposições melhor, não esconder nada, mostrar tudo, descrever, deixar qualquer cidadão ver esses quadros”, finaliza. 18/07/2013 Ian Chénkman, Gazeta Russa.
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